Os Crescidos deixam de Voar

“Eu sei que voar é uma forma quase enfadonha de falar do que somos capazes quando escorregamos do olhar para o coração. Mas fiquemo-nos por ele. Porque é que as pessoas, logo que crescem, deixam de voar? Eu acho que as pessoas, quando crescem, se tornam um bocadinho sem-abrigo. Porque lhes falta uma janela – entreaberta, que seja – à sua espera. Deixam de acreditar em fadas e em bruxas, mesmo sabendo que elas moram por aí, fora das histórias. E, se se fiam no Pai Natal, é com vergonha. Acham que o coração se torna um órgão cor-de-rosa, esconso, com quatro cavidades. Sem janelas, nem mansardas nem guaritas. A mim, parece-me que as pessoas, quando crescem -, sem saberem porquê – só brincam às escondidas. Não choram no cinema. Deixam de saber como se ri até às lágrimas. E perdem, o jeito – bom e batoteiro – de espreitar as conclusões antes de folhearem qualquer história. Se não se perdem nas histórias, as pessoas desistem de voar. Deixam de ter várias vidas. E, em todas aquelas onde, teimosamente, ainda se barricam, morrem para a vida eterna. Muito, muito antes, do seu entendimento lhes cochichar que já morreram. Parece-me que, quando crescem, as pessoas só voam quando sonham. E isso não é bem voar; é mais dormir. Deixam de saber como é que, partindo dos olhos, se chega, num instantinho, ao coração. Tornam-se amigas do silêncio. Passam a viver resgatando memórias. E, quando é assim, a esperança (que as memórias constroem, peça-a-peça) fica inquinada de saudade. E desperdiçam as outras vidas (para além da sua) que, sempre que estamos disponíveis para voar, não deixam de se pespegar, por perrice, ao pé de nós.”

Eduardo Sá*, aqui.

Os Crescidos é o que os meus alunos mais pequenos chamam aos adultos, e o facto dos adultos deixarem de voar ( que é das poucas coisas acertadas que este senhor diz) faz-me gostar cada vez mais de crianças.

Que aborrecimento ver o mundo a preto e branco, sem histórias nem fantasia, sem tontices nem brincadeiras, eu conheço o mundo “real” mas recuso-me a que seja esse o que rege os meus dias, é tão bom poder voar.

 

* sim este senhor irrita-me até ao fim da minha alma e ninguém me tira da cabeça que ele é um potencial psicopata disfarçado de amigo das criancinhas, ainda assim lido é melhor que ouvido.

Uma carta comovente

Por me ler e reler nela por diversas vezes, decidi colocar alguns excertos aqui, esta carta é de Fiona Apple e mais não vos digo, apesar do que aqui colo, considero que deviam ler a carta integral, é uma carta de amor e camaradagem na versão mais pura que pode existir.

Como eu vivo uma paixão dessas e estou numa relação exactamente assim há oito anos e apenas recentemente apanhei um susto que ainda não terminou completamente, partilho, partilho porque deve ser partilhada.

Li pela primeira vez aqui.

I have a dog Janet, and she’s been ill for almost two years now,

as a tumor has been idling in her chest, growing ever so slowly. She’s almost 14 years old now.I got her when she was 4 months old. I was 21 then ,an adult officially – and she was my child.” 
 
 
 
 

Na minha versão 24 mas o resultado  é o mesmo, gostem ou não gostem, ela é minha filha.
 
 

“She’s almost 14 and I’ve never seen her start a fight ,or bite, or even growl, so I can understand why they chose her for that awful role. She’s a pacifist.”
 
 

 
 
A Nikas barafusta e “ladra” mas opta sempre por se afastar nunca enfrenta.
 
 

Janet has been the most consistent relationship of my adult life, and that is just a fact.
We’ve lived in numerous houses, and jumped a few make shift families, but it’s always really been the two of us.
She slept in bed with me, her head on the pillow, and she accepted my hysterical, tearful face into her chest, with her paws around me, every time I was heartbroken, or spirit-broken, or just lost, and as years went by, she let me take the role of her child, as I fell asleep, with her chin resting above my head.

She was under the piano when I wrote songs, barked any time I tried to record anything, and she was in the studio with me all the time we recorded the last album.”

A Nikas como gatinha que é deita-se em cima do piano ou por baixo do violoncelo, de resto estamos exactamente iguais podia ter sido escrito por mim.

I will not be the woman who puts her career ahead of love and friendship.” – Nunca!

And helps her be comfortable, and comforted, and safe, and important.” – Preocupação nº1
 
“So I am staying home, and I am listening to her snore and wheeze, and reveling in the swampiest, most awful breath that ever emanated from an angel.
And I am asking for your blessing.

I’ll be seeing you. 

Love, Fiona”

Achei este terminar de carta lindo.
 
 
 
 
 
 
 

PARODIA AO PRIMEIRO CANTO DOS LUSIADAS DE CAMÕES POR QUATRO ESTUDANTES DE EVORA EM 1589.

Évora será sempre Évora e o espirito não muda nem com 500 anos em cima.

Via Projecto Gutenberg.

PARODIA AO PRIMEIRO CANTO DOS LUSIADAS DE CAMÕES POR QUATRO ESTUDANTES DE EVORA EM 1589.

LISBOA.
NA TYPOGRAPHIA DE G. M. MARTINS.
Rua do Ferregial de Baixo, 22.
1880.

As honras da parodia só ás obras do genio costumam conceder-se. A divina Iliada foi parodiada em um poema heroi-comico tão antigo, que geralmente se attribue ao proprio Homero; ainda que Suidas lhe dá por auctor a Pigres, irmão da Rainha Artemisa. N’esse poema, intitulado a Batrachomyomachia, a terrivel lucta dos Gregos e Troianos é reproduzida no maravilhoso combate dos ratos e das rãs. Esta corôa burlesca ainda faltava ao rival de Homero, quando o poeta Scarron primeiro marido da famigerada Marqueza de Maintenon, se lembrou de cantar:

    …… cet homme pieux,
Qui vint chargé de tous se Dieux
Et de Monsieur son père Anchise,
Beau vieillard à la barbe grise, etc.

A grande obra do unico homem de genio que talvez tenha produzido a nossa terra, não podia isentar-se d’este fado inherente ás grandes celebridades. Eram apenas passados dezoito annos depois da publicação dos Lusiadas—ainda a reputação de Camões não estava consagrada pelos seculos, quando alguns homens engenhosos comprehenderam que aquella obra immortal era uma d’aquellas a que a parodia era devida. O resultado de seus trabalhos não é de certo para comparar com nenhuma das espirituosas producções que ficam mencionadas; mas ainda assim não é esta inteiramente destituida de merecimento. Francisco Soares Toscano, bem conhecido dos litteratos pelo seu Parallelo de Principes, escreveu uma interessante noticia sobre esta obra, em que nos conta o curioso modo por que ella foi composta. Quatro estudantes da Universidade d’Evora costumavam sair a passear, ás tardes, aos arrabaldes da cidade, levando comsígo os Lusiadas. Chegados a um verde ferrageal, sentavam-se a uma fresca sombra, e se abria a sessão parodiadora. Assim como a engelhada e disforme mascara de uma velha megéra cobre o rosto radiante de formosura de uma elegante Coquette, para mais fazer realçar seus encantos, quando deixe cair aquelle hediondo disfarce; assim o immortal poema devia ser desfigurado por aquelles travessos estudantes. Os Gamas, Castros e Albuquerques tinham de ceder seu logar aos Catigelas, Lunas e Barbanças, barões sem duvida tão assignalados nos combates de Baccho como ess’outros nos de Marte.

Dois mezes durava aquella sessão extraordinaria; e já tão continuados passeios davam que fallar aos estudantes e tambem dariam que entender á Santa Inquisição d’Evora, se aquella sociedade secreta não fosse composta, como de facto o era, de quatro theologos, e tão orthodoxos, que um d’elles veio a ser Inquisidor Geral. Mas por fim appareceu a mysteriosa obra dos quatro patuscos, como hoje lhe chamaria um academico, e não sei se já então lhe chamavam. A este modo de composição de sociedade e ás muitas emendas que depois soffreu dos curiosos, como adverte Toscano, se deve talvez a confusão do enredo d’este poema. Parece que seus collaboradores tinham principalmente em vista inverter ao de-vinho cada verso que entrava em discussão, sem attender á coherencia do todo. É provavel que se propozessem a celebrar os mais famosos bebedores Evorenses, aos quaes alludissem, e talvez nomeassem por seus proprios nomes ou apellidos. Toscano, que os devia conhecer, assim o indica quando diz que tinha feito varias cotas a esta parodia para melhor se entender. Com effeito na est. XXX se faz menção de um Pero Vaz, que provavelmente é o mesmo christão-novo, bebado perdido, auctor do epigramma latino de que falla a noticia. Infelizmente para a historia daBorracheologia Lusitana, cotas e epigramma tudo se perdeu.

Os collaboradores d’esta innocente profanação litteraria não são inteiramente desconhecidos. Manoel do Valle de Moura, natural de Arrayolos no Alemtejo, doutorou-se em Theologia na Universidade d’Evora, e chegou a ser Arcebispo d’esta diocese e Inquisidor geral. Contava vinte e cinco annos quando concorria para esta composição, e chegou a uma avançada idade. Além da obra De Encantationibus et Ensalmis, de que falla Toscano, e outras de não menor utilidade, Barboza o faz auctor de uma Illustração á primeira Ode de Camões. De certo não fez pouco Sua Rev.^{ma} se conseguiu lançar alguma luz sobre aquelle confuso ou estropeado poema. Nem Bartholomeu Varella, nem o Licenciado Manoel Luiz, tiveram a honra de encher as columnas da Bibliotheca Lusitana; mas João Baptista de Castro de ambos faz menção no seu Mappa de Portugal. Não é comtudo a Varella, como elle pensa, que cabem os louvores que lhe dá por esta composição burlesca. Manoel Luiz Freire—que assim lhe chama um Padre Francisco da Cruz, citado por Castro,—se deve ter como o principal e mais chistoso collaborador desta obra. As unicas noticias biographicas que d’elle sabemos, são as apontadas por Toscano em sua noticia. O quarto dos theologos, e ao que parece o mais theologo de todos, foi o pobre Luiz Mendes de Vasconcellos, cujo ronceiro estro só lhe pôde inspirar um unico verso. Não se confunda este obscuro individuo com o auctor do Sitio de Lisboa e da Arte militar, supposto fossem contemporaneos. Um dedicou-se á Egreja, o outro ás armas.

Esta parodia chegou a alcançar certa celebridade, ainda que até agora nunca fosse impressa. Eis-aqui o que d’ella diz Faria e Souza, fallando de outra de um soneto de Garcilasso, attribuida a Camões: «Lo que mi poeta hizo conquel soneto de Garcilasso, pasándose de tanta gravedad a tanta picardia, hizo otro ingenio Portuguez con el canto 1.^o de su Lusiada, intitulándole Borrachera; porque celebra en él á algunos aficionados del vino; y las mas de las otavas son bueltas á este proposito con gran felicidad.» E depois de dar como amostra os quatros primeiros versos da 1.^a oitava, prosegue: «El canto 2.^o continuó (y no con menos felicidad) Antonio de Magallanes y Menezes, señor de la Ponte da Barca, que este ano de 1645, aqui en Madrid, me referió algunas estancias. Yo, quando en mi mocedad atendia á esto, bolvi tambien algunas, de que se me acuerdan los primeros quatro versos de la 90 del canto 5.^o, que son:

Da boca de facundo capitão, &c.

y mi rebuelta dice deste modo:

Da boca do fecundo borrachão
Pendendo estavam todos bem bebidos,
Quando deu fim a grande inundação
Dos altos copos grandes e subidos!»

(Comment. ás Rim. Tom. 1.^o pag. 354).

FESTAS BACCHANAES:

CONVERSÃO DO PRIMEIRO CANTO DOS LUSIADAS DO GRANDE LUIZ DE CAMÕES VERTIDOS DO HUMANO EM O DE-VINHO POR UNS CAPRICHOSOS AUCTORES: S.
O DR. MANOEL DO VALLE, BARTHOLOMEU VARELLA, LUIZ MENDES DE VASCONCELLOS, E O LICENCIADO MANOEL LUIZ, NO ANNO DE 1589.

* * * * *

NOTICIA.

Esta obra da conversão do primeiro canto do poema de Luiz de Camões se fez no anno de 1589, para a qual concorreram quatro pessoas, a saber: o Dr. Manoel do Valle, deputado da Santa Inquisição, que compôz o livro dos Ensalmos em latim, que agora imprimiu: outro foi Bartholomeu Varella, natural de Vianna, junto a Evora, o qual falleceu, que era irmão de Diogo Pereira, que foi este anno ás Côrtes, que El-rei D. Filippe II fez em Lisboa, por Procurador d’esta cidade de Evora. Foi Bartholomeu Varella clerigo e grandissimo poeta. O terceiro foi Luiz Mendes de Vasconcellos, criado do Arcebispo D. Theotonio; o qual posto que não era poeta, se achou ao fazer da obra; e só fez um verso, que é o ultimo da oitava 17; porque estando elles suspensos no cuidado de completarem a dita oitava e parados no verso que diz:

Porque este é o que aguenta a velha idade, acudiu o dito Luiz Mendes, concluindo:

Desterrando a agua-pé d’esta cidade.

O quarto e principal auctor foi o Licenciado Manoel Luiz, Bacharel; e este anno de 1619 vive com o Priorado de Terena. Este foi o promovedor d’esta obra, e a fez quasi toda, ou o melhor d’ella.

Quando a fizeram eram então todos theologos; e ás tardes, acabado o estudo, sahiam pela porta de Machede, e assentados em um ferrageal, iam traduzindo para a bebedice as taes oitavas de Camões, fingindo uma embarcação de Lisboa para Evora, como Camões a de Portugal para a India Oriental; e compozeram a tal obra dentro em dois mezes, no cabo dos quaes sahiram com ella: sendo que já os estudantes suspeitavam de alguma applicação (posto que não soubessem de certo o que era) pelos verem ir todas as tardes para fóra dos muros, e communicarem seus papeis, sem darem conta d’isso a ninguem.

Finalmente, sahida a obra, foi muito festejada e estimada de todos; e lendo-a o Padre Ferrer, castelhano (varão doutissimo da Companhia, do qual o Dr. Manoel do Valle traz uma carta no seu livro) e fallando-se n’ella, costumava dizer, que era a melhor obra que nunca sahira nem elle vira, se não fosse tão suja.

Depois, como se divulgou, cada um a quiz emendar como entendia, d’onde vem andarem hoje as copias com tanta diversidade de leituras. Porém eu, esta que aqui vae, a trasladei do proprio original e letra de Bartholomeu Varella, que está em poder do Chantre da Sé d’esta cidade, Manoel Severim de Faria, que a houve do dito Varella, e lhe fiz algumas cotas para intelligencia da obra.

Isto me parece basta para se saber o como esta obra se fez. E eu Francisco Soares Toscano o fiz aos 10 de Janeiro de 1619.

FESTAS BACCHANAES.

ARGUMENTO.

Fazem concilio os bebados de porte,
Oppõe-se aos Bagulhentos Pedro ingente;
Favorece-os o Catigela forte,
No Lamarosa tem seu lava-dente.
De inveja Lyeo lhes busca a morte,
Descendo a Monte-mór contra esta gente,
Que vê em rio Mourinho a acção traidora,
E a Peramanca chega vencedora
.

I.

Borrachas, borrachões assignalados,
Que de Alcochete junto a Villa Franca,
Por mares nunca d’antes navegados
Passaram inda além de Peramanca:
Em pagodes, e ceias esforçados,
Mais do que se permitte a gente branca,
Em Evora cidade se alojaram,
Onde pipas e quartos despejaram:

II.

Tambem as bebedices mui famosas
D’aquelles que andaram esgotando
O imperio de Baccho, e as saborosas
Agoas do bom Louredo devastando;
E os que por bebedices valerosas
Se vão das leis do reino libertando;
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar Baccho, e não Marte.

III.

Cessem do Novellão, do gran Barbança
As grandes bebedices que fizeram;
Cale-se do Rangel e do Carrança
A multidão dos vinhos que beberam,
Que eu canto d’outra gente e d’outra lança,
A quem frascos de vinho obedeceram:
Cesse tudo o que a musa antiga canta,
Que outro beber mais alto se alevanta.

IV.

E vós, bacchanaes nymphas, pois creado
Em mim tendes a sêde tão ardente,
Se sempre em largo copo espraiado
Festejei vosso vinho alegremente,
Dae-me agora um bom papo despejado
Para beber á perda co’esta gente,
Porque de vossas agoas Baccho ordene
Um rio para bebados perenne.

V.

Dae-me uma vasilha mui cheirosa,
Seja de bom licor, não saiba a arruda,
De Peramanca seja que é gostosa,
O peito esforça, a côr ao gesto muda;
Dae-me igual nome ás tassas da famosa
Gente vossa que Baccho tanto ajuda;
Que se espalhe, e se cante no universo,
Se tanta bebedice cabe em verso.

VI.

E vós, Fernan Gonçalves, segurança
Das festas de Lyeo em esta idade,
Podeis atravessar com confiança
Quantas adegas ha n’esta cidade:
Vós, mano, nosso amor, nossa esperança,
A quem só promettemos lealdade,
Pois Baccho a nós vos deu por cousa grande,
Seja a medida assim de quem a mande.

VII.

Vós só tendes o ramo florescente
Da arvore de Cybele mais amada,
Que nenhuma nascida em Benavente
Ou pelo rio abaixo até Almada.
Vêde-o nas toalhas, que presente
Vos mostra a bebedice já passada,
Nas quaes vivas lembranças vos deixou
O que de vinho mais se carregou.

VIII.

Vós, alto taverneiro, cujo imperio
O bebado em se erguendo vê primeiro,
Ou beba n’este nosso hemisferio,
Ou beba lá n’esse outro derradeiro:
E nem por isso sente vituperio
O fidalgo, o estudante, o cavalleiro,
Antes o Turco, o Mouro, e o Gentio
Lhes pêza não beber do vosso rio:

IX.

Inclinae por um pouco a magestade,
Que no azamboado rosto vos contemplo,
Quando fordes c’os mais d’esta cidade
Offertar-vos a Baccho no seu templo:
Os olhos da real bebecidade
Ponde no borrachão, vereis exemplo
De amor de vossos vinhos saborosos
Por bebados louvados espantosos.

X.

Então vereis se sois bem conhecido
De todos os amigos de Falerno;
Que não é pouco ser obedecido
No estio, primavera, outono, inverno:
Ouvi, vereis o nome engrandecido
D’aquelles de quem sois senhor superno;
E julgareis qual é mais excellente
Se ser do mundo rei, se de tal gente.

XI.

Ouvi, que não vereis com vãs façanhas
Fantasticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
Bebedices dos vossos são tamanhas,
Que excedem as sonhadas fabulosas,
Que excedem ao primeiro vinhateiro,
E a Baccho inda que fôra verdadeiro.

XII.

Por estes vos darei um Claudio fero,
Que fez a Peramanca tal serviço,
Um fulano Coutinho, que de mero
A borracha para elle só cubiço.
Pois pelos doze Pares dar-vos quero
Uns doze que sobre um pobre chouriço
Entornaram tão rijo que de cama
Um monte lhes serviu d’esterco e lama.

XIII.

E se a troco de Nun’alvres e Barbança
Ou do Luna quereis igual memoria,
Vêde primeiro a Pedro, cuja lança
No beber escurece qualquer gloria;
E aquelle que do enxame a segurança
No copo só quiz ter, por ter victoria;
Aquelle Diogo, invicto cavalleiro,
Que em quatro não é quarto, mas primeiro.

XIV.

Nem deixarão meus versos esquecidos
Aquelles que na sêde gastadora
Se fizeram no copo tão subidos,
De Lyeo a bandeira vencedora:
Um Daniel fortissimo e os temidos
Lacaios, por quem sei que sempre chora
Da Chamusca e Louredo o vinho forte,
E outros a quem Thetis causa a morte.

XV.

Em quanto a estes canto, e a vós não posso,
Bom Fernando, que não me atrevo a tanto,
Essa mão alargae ao vinho vosso,
Dareis materia a nunca ouvido canto.
Começarão a fugir d’agoa do poço
Os que em vêl-a sómente tem espanto,
Que em pagodes, merendas e jantares
Empinar querem só de Baccho os mares.

XVI.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Frio, que usar de vós lhe não é dado;
Pelo contrario o barbaro gentio
Com desejo de ver-vos ‘stá squentado;
Peramanca o vermelho senhorio
Vos tem s’enviuvaes apparelhado;
Que pois em dar seus bens sois brando e tenro,
Deseja de comprar-vos para genro.

XVII.

De Castella se veem n’essa morada
Agoas de duas côres deleitosas,
Quando a nossa cidade está esgotada,
Inda que o gesso as faz menos gostosas;
C’o licor novo espera ser tirada
A reima das entranhas sequiosas,
Porque esse é o que aquenta a velha idade
Desterrando a agoa-pé d’esta cidade.

XVIII.

Mas em quanto com novo não me alento,
Reparti com os pobres que o desejam;
Ide largando d’elle, com intento
Que seus poucos reales vossos sejam.
Assi recolhereis o nosso argento,
E de todos aquelles que festejam
Por tal ordem a Baccho celebrado,
Que costumam beber cada bocado.

XIX.

Já de lá d’Alcochete caminhavam,
As fermosas borrachas apertando,
E depois de vasias as largavam,
Outras d’outro licor melhor tomando,
De branca escuma os copos se mostravam
Cubertos ao beber não lhe assoprando;
Mas as agoas nem doces, nem salgadas
D’ellas vistas não foram nem provadas.

XX.

Quando Francisco, bebado espantoso,
Que em copo, frasco, taça é eminente,
Se ajuntou em conselho, desejoso
De dar favor a toda aquella gente.
Pisando esse caminho tão famoso
Da rua das adegas prestemente,
Convocados da parte do entornante
Por um já n’outro tempo bom tocante.

XXI.

Deixam dos sótãos frios o aposento
Que para beber n’elles lhe foi dado,
Obedecendo logo ao mandamento
De um bebado tão nobre e tão honrado.
Alli se acharam juntos n’um momento
No bairro de Reimonde celebrado,
Os da Porta d’Avis e outros onde
As suas casas grandes tem o Conde.

XXII.

‘Stava Francisco alli sublime e dino,
Vermelho como os raios de Vulcano;
Por sceptro tinha um copo crystalino
De cheiroso licor, mas não d’este anno;
Da boca lhe sahia um ar tão fino,
Que em vinho convertêra um tigre hyrcano;
Dos ramos tinha c’rôa rutilante
Em que tornou a Daphne seu amante.

XXIII.

Em lagariças, dornas assentados,
Cubertos de mosquitos que voavam,
Os mais bebados são agasalhados,
Sem ordem nem razão se assentavam.
Precedem os menores aos honrados;
E assi uns pelos outros se trocavam:
Quando Francisco alto assi dizendo,
Com tom de voz começa grave e horrendo:

XXIV.

Moradores de donde antigamente
Teve Sertorio casa e certo assento,
Se do grande beber da forte gente
De Baccho não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos fados grandes certo intento
Que por elles s’esqueçam Castelhanos,
Flamengos, Allemães, Italianos.

XXV.

Já lhe foi, bem o vistes, concedido
A um bebado d’estes mais pequeno
Sogigar Caparica e ter bebido
Toda a terra que rega o Tejo ameno.
Camarate lhe tem obedecido,
Póvos se lhe mostrou brando e sereno;
Para que é mais cansar? cousa é notoria
D’Ourem e Figueiró levaram gloria.

XXVI.

Deixo, bebados, toda a fama antiga
Que lá dentro em Lisboa uns alcançaram,
Quando com dez Tudescos n’uma briga
No nosso officio tanto se afanaram.
Tambem deixo a memoria que os obriga
A grande nome quando se tomaram
C’um soldado Hollandez, c’um Biscainho,
Quando a carga do frasco era só vinho.

XXVII.

Agora vêdes bem que vem bebendo,
E cada qual já traz seu couro leve,
Pelas charnecas sêccas, não temendo
Sequidão dos Pegões, a mais se atreve;
Que havendo tantos já que as partes vendo
Onde o copo comprido tem por breve,
Inclinam seu proposito e porfia
A ver os vinhos que Evora teria.

XXVIII.

Promettido lhe tem Baccho o governo
Da rua das adegas celebrada,
Onde vinhos lhe tem que os de Falerno,
Os do Rhim, ou de Alcache tem em nada.
Bem sabeis que se vem chegando o inverno,
Esta gente vem sêcca e esgotada,
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada Peramanca que deseja.

XXIX.

E porque, como ouvistes, tem passados
Na viagem tão asperos perigos,
Tantos vinhos vinagres esgotados,
Nas Vendas novas, nos Pegões antigos;
Que sejam determino agasalhados
Entre as quintas aqui de seus amigos,
E enchendo cada qual a sua bota
Comecem a seguir sua derrota.

XXX.

Taes palavras Francisco assi dizia,
Quando todos sem ordem respondendo,
Na sentença um do outro differia,
Razões diversas dando e recebendo.
Mas Pero Vaz alli não consentia
No que Francisco disse, conhecendo
Que esqueceria um bebado eminente
Se cá viesse beber aquella gente.

XXXI.

A bebados ouvira que viria
Uma gente de copo tão estranha,
Pela charneca, a qual esgotaria
Tudo quanto Louredo e Lagem banha;
E com beberes novos venceria
A todos os famosos d’Allemanha.
Altamente lhe dóe perder a gloria
Na taça em que de todos tem victoria.

XXXII.

Vê que de Evora teve sogigado
Os bebados e o vinho, e nunca caso
Lhe tirou por insigne ser louvado
Té dos imigos d’agoa do Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão celebre nome em negro vaso
D’agoa do esquecimento, se lhe chegam
Os bebados insignes que navegam.

XXXIII.

Sustentava contra elle o Catigela,
Affeiçoado á gente bebedana,
Por quantas bebedices vira n’ella,
Jantando em Alcochete uma semana.
Affeiçoado vem da gente bella,
Que por brazões os copos tem ufana,
De quem a lingua é tal, se o copo empina,
Que ora parece grega, ora latina.

XXXIV.

Estas cousas se movem em uma cêa
Onde apenas um ao outro s’entende,
Um d’elles tem a vinda em boa estrêa,
Outro ás picheladas a defende;
Assi que um pela infamia que recêa,
E outro pelo gasto que pretende,
Porfiam, arrebessam, permanecem,
A quasquer seus amigos favorecem.

XXXV.

Qual o fervente mosto em talha escura,
Quando a tinta lhe lançam espremida,
Por aqui, por alli sair procura
Com impeto e braveza desmedida;
A adega brame toda co’a fervura,
Bota o bagulho fóra a escuma erguida,
Tal andava o tumulto levantado
Entre um bebado e outro apaixonado.

XXXVI.

Mas um que a esta gente sustentava,
E d’entre todos elles mais bebia,
Ou porque o amor do vinho o obrigava;
Ou porque o seu beber o merecia,
Tremelicando alli se levantava,
Olhando a quem primeiro brindaria;
Um borrachão famoso pendurado,
Trazia ao tiracolo ao esquerdo lado.

XXXVII.

Do pichel a viseira rutilante
Levantada, de vinho branco e puro,
Por dar-lhe de beber a pôz diante
De Francisco com taes armas seguro,
E dando uma pancada penetrante
C’o grande borrachão no sólo duro,
O chão tremeu, e um d’elles de torvado,
Uma gran vez tomou sobre um bocado.

XXXVIII.

E diz: Ó bebado alto, a cujo imperio
Os vinhos obedecem que encerraste,
Se aquelles que em ti buscam refrigerio,
Cujo beber soberbo tanto amaste,
Não queres que padeçam vituperio,
Pois que esta adega hoje lhe mostraste,
Não ouças mais, pois bebado és direito,
A quem em bebedices é suspeito.

XXXIX.

Porque se o copo aqui se não mostrasse
Vencido d’esta gente e infamado,
Bem fôra que aqui Baccho o sustentasse,
Que o territorio seu deixa esgotado,
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque em fim vem de estomago danado;
E nunca beba mais vinho de Beja
Quem do beber alheo tem inveja.

XL.

E tu pois que padre és da borracheza,
Não consintas que bebam por canada;
E porque mostres mais tua grandeza,
Com pipas, quartos seja agasalhada:
Tragam-lhe alguns leitões lá da deveza
De conserva azeitona e retalhada,
Sardinha de Liceira que é conforme
Que a sêde se repare e se reforme.

XLI.

Como isto disse o bebado famoso
O grão Francisco ledo consentiu,
E uma taça de vinho mui cheiroso
Logo sobre elles todos esparsiu.
Cada um pelo caminho desgostoso
Da rua das adegas se partiu,
Providos de beber seus instrumentos
Tornaram para os frios aposentos.

XLII.

Em quanto este conselho na famosa
Adega se passou, aquella gente
Pisando a charneca sequiosa
Beber deseja d’Evora a agoa-ardente.
E chegando á Amieira lamarosa,
Onde o caminho vem de Benavente,
Se algum licor trazia de Lyeo,
Sem gota lhe ficar alli o bebeo.

XLIII.

Tão rijamente os odres despejavam
Como em terra que tem de vinho abrigo;
Mas se tanto bebiam confiavam
No Thomé dos Pegões que era amigo.
Á desejada venda já chegavam
Onde os abraça o seu compadre antigo;
E em signal que da vinda se alegrava,
Novos vinhos que tinha lhe mostrava.

XLIV.

Vasco Bagulho que era o capitão
Que ás Bacchanaes venturas se offerece,
De soberbo e altivo borrachão,
A quem fortuna em copo favorece,
Para se aqui deter não vê razão,
Que a terra não dá vinho ao que parece.
Por diante passar determinava
Mas impediu-lh’o o vinho que chegava.

XLV.

Eis que apparece logo em companhia
Uma recova d’asnos de Castella,
Que gran copia de vinho lhe trazia,
Que foi fermosa vista, cousa bella.
Alvoroçam-se todos de alegria,
Desejam já provar a causa d’ella:
Que tal será o vinho alli diziam,
De que logares estes o trariam?

XLVI.

Os seus borrachões eram de maneira
Que pipas pareciam mui compridas,
Agasalha-os com festa a taverneira
Por suas taças ver melhor providas,
O vinho bota em vasos de madeira.
Enchendo do restante as mais medidas.
Senta-se á meza logo em continente,
Para beber tambem com esta gente.

XLVII.

E do que os Castelhanos vem providos
Começam a comer todos sentados,
Que uns d’azeitonas vem apercebidos,
Outros de uns pexinhos bem salgados.
E os que de manjares vem despidos,
Começam a mandar vir alhos assados,
E sobre isto aos outros vão brindando,
Os castelhanos vinhos festejando.

XLVIII.

Estando assi comendo, eis que chegavam
Outros que lhes pediam que esperassem,
Porque para beber desafiavam
Os mais famosos tres que alli se achavam.
Vinho trazem tambem, o qual gavavam,
Pedindo aos assentados que provassem:
Para provar do vinho um fóra salta,
Que no beber aos outros mais se exalta.

XLIX.

Não tem descarregado a agoa-ardente,
Quando o que saltou fóra já bebia;
Começa de gaval-o á sua gente,
Dizendo que parece malvasia.
O tarverneiro então em continente
Tal gente recebeu com alegria.
Enchem vasos de vinho e do que deitam
Os que vem e os que estão nem gota engeitam.

L.

Comendo alegremente perguntavam,
Com lingua onde as palavras se detinham,
D’onde era o licor branco que gostavam
E se vermelho entre elle tambem tinham.
De Castella os marranos lhe tornavam
Que si, e suas mercês de donde vinham?
Disse um d’elles: De junto a Benavente,
Vimos a Evora a beber sómente.

LI.

De Riba-tejo temos já provado
Os vinhos, e as adegas temos visto,
Caparica deixamos esgotado
Molto sudando nel glorioso acquisto.
E de um bebado somos tão amado,
Tão querido de todos e bem quisto,
Que não no largo mar com leda fronte,
Mas de vinho entraremos n’uma fonte.

LII.

E por mandado seu buscando vamos
A terra que Louredo em torno rega,
Depois que os quartos todos esgotamos
Da Telha, Lavradio, Aldea-gallega.
Mas já razão parece que saibamos,
Se entre vós a verdade se não nega,
Quem sois, que vinho é este que buscaes,
E se tendes do d’Evora alguns signaes.

LIII.

Somos, um dos do vinho lhe tornou,
Estrangeiros na terra e na nação,
Que os proprios são aquelles que criou
A terra que sovado come o pão.
A lei cega tivemos que ensinou
Aquelle descendente de Abrahão,
Que vinho não bebeu quente nem frio;
Intendami chi può, che m’intend’io.

LIV.

Esta pequena venda aonde estamos
É de nossa passagem certa escala,
Onde ás vezes taes vinhos nós gostamos,
Que acontece ficar homem sem falla.
E por ser terra esteril procuramos,
Cada vez que passamos, visital-a.
Comem aqui e bebem tanto a pique,
Que prometto que o Fuentes cedo enrique.

LV.

E pois que tantos odres despejaes
Se d’Evora buscaes o vinho ardente,
Guiando-vos irei, té que sejaes
Postos em Monte-mór seguramente,
Onde será bem feito que vejaes
O tridentino André que é o bebente
Que essa terra governa, e que vos veja,
Para que d’alguns vinhos vos proveja.

LVI.

Dizendo isto o Mourisco carregou
Os seus odres, deixando a companhia,
D’ella e do vendeiro se apartou;
Bebe cada um sua vez por cortezia;
Os novos companheiros acceitou
Com mostras de prazer e d’alegria,
Dizendo a cada um que caminhasse,
E quem beber quizesse que o tomasse.

LVII.

A noite se passou na leda frota
Com estranha alegria não cuidada,
Por acharem em terra tão remota
A venda nova d’elles desejada.
Disse o Mourisco alli: Venga la bota!
Na castelhana lingua d’elle usada.
Elles que no beber tanto se esmeram,
A seu mandado logo obedeceram.

LVIII.

Do vinho alegres côres rutilavam
Pelas taças de vidro crystallino;
As velhas azeitonas que lhes davam
Festejam mais que flôres e boninas,
Da venda os taverneiros s’espantavam
Do cheiro e do sabor das agoas finas,
Porém a demais gente não provava
O bom licor que entre esta se brindava.

LIX.

Mas assi como a Aurora marchetada
As fermosas borrachas lhe mostrou
Áquella gente meia atordoada,
Cada qual d’elles sua vez tomou.
Começa a embebedar-se a camarada,
Que de fermosos frascos se adornou,
Para beber com festa e alegria
C’o bebedor da terra que partia.

LX.

Partia alegremente, desejando
De beber já com gentes tão ufanas,
Que por charnecas sêccas caminhando,
Vem a beber em terras Transtaganas.
A borracha que traz vem empinando
Do licor que se vende não com canas.
Já chega, mas sem gota o Tridentino;
E quem sem gota está é bem mofino.

LXI.

Recebem-no alli alegremente,
O Mourisco com sua companhia,
E dá-lhe d’azeitonas um presente,
Que para tal effeito já trazia.
Dá-lhe sardinha frita; salta o ardente
Licor, com que elle tem tanta alegria.
Tudo o Marques contente bem recebe,
Mas triste está com ver que ninguem bebe.

LXII.

Estava o Granadino mui confuso
Com ver que não tem já de vinho nada,
Com que brinde ao bebente, como é uso,
Que para o receber fez tal jornada.
Reprende o companheiro seu abuso,
Pois sequer não deixára uma canada
Para enxaugoar a boca ao que trazia
Do fresco Monte-mór a alegre via.

LXIII.

Porque em chegando diz que ver deseja
Do vinho os instrumentos; que não crê
Que tão honrada gente alli esteja,
Sem terem pelo menos agoa-pé.
Mas os outros a quem nada sobeja
Do licor da boa planta de Noé,
Aos vendeiros pedem que alli ‘stavam,
Das fundagens que para si guardavam.

LXIV.

E disse um d’elles: pois que em tal sazão
Viemos que entre nós nem gota havia,
Quero-vos dar alguma informação
De nós, em quanto o vinho lá se avia.
Posto que granadino é de nação
Este homem que nos serve aqui de guia,
Perto está de Lisboa a patria nossa,
Buscamos Peramanca amada vossa.

LXV.

Deixamos esgotado todo o imperio
Que Baccho em nossas terras tem visivel;
Vimos correndo agora este hemispherio,
Porque beber por lá não é soffrivel:
E posto que sofframos vituperio,
Por um largo beber tudo é soffrivel:
Que melhor é vergonha em quem bebeu,
Que a dôr por não soffrer q’outrem soffreu.

LXVI.

Porque bastava só vinho infinito,
Que não ha nem gota já na companhia,
Que é tal, e no beber tem tal esp’rito,
Que inda um Tejo de vinho esgotaria.
Se as vasilhas quer ver como tem dito,
Cumprido esse desejo te seria:
Vasias as verás, que eu me obrigo
Que sempre assi ‘starão, s’imos comtigo.

LXVII.

Isto dizendo mostram diligentes
Os vasos com que apagam as seccuras;
Mostram fermosos frascos e as pendentes
Borrachas que em caminhos são seguras:
Os odres nas medidas differentes,
Cobertos d’encouradas vestiduras:
Outras borrachas trazem por aljavas,
De còrno copos grandes, taças bravas.

LXVIII.

Chega n’isto o vendeiro diligente
Com as suas fundagens saborosas;
Bebe d’ellas André alegremente,
Desafiando as gentes tão famosas.
Mas d’entre elles um bebado valente
Responde-lhe que as gentes valerosas
Não sahiam a um; e com razão,
Que é fraqueza entre ovelhas ser leão.

LXIX.

Mas d’isto que André Marques bem notou
E de tudo o que ouviu no copo attento,
Um odio certo n’alma lhe ficou
Uma vontade má de pensamento.
Nas obras e no gesto o não mostrou,
Mas com risonho e ledo fingimento
Tratal-os brandamente determina,
Até que mostrar possa o que imagina.

LXX.

Piloto lhe pedia o capitão
Por quem podesse a Evora ser levado,
Polo qual lhe daria um borrachão
De vinho de Valbom que é extremado.
André lh’o prometteu, mas com tenção
De peito venenoso e tão danado,
Que a morte, se podesse, n’este dia
Em logar de piloto lhe daria.

LXXI.

Tal odio lhe ficou e má vontade
Da resposta que aquelle lhe tornou,
Que agoa lhe ordena dar com falsidade
Em logar do licor que Noé deixou.
Oh que caso cruel! oh que maldade!
Que de uma só palavra que soltou
D’este que elle buscava como amigo
O faz ficar seu perfido inimigo!

LXXII.

Partiu-se n’isto André, sem companhia
Dos bebados que tinha despedido,
Com engano seu e grande cortezia,
O gesto ledo a todos e fingido.
Já sobre seu asninho se subia
Com vinho de que ia apercebido,
E quando se desceu no aposento
Não levava a borracha mais que vento.

LXXIII.

Da rua das adegas o Thebano,
Que da parternal coxa foi nascido,
Olhando o ajuntamento tão ufano,
Ser do seu bom André aborrecido,
No pensamento cuida um falso engano
Com que seja de todo destruido.
E em quanto isto n’alma imaginava
Um borrachão tomando assi fallava.

LXXIV.

Está do Fado já determinado
Que em tantas bebedices tão famosas
Se tenham d’estes bebados achado,
As suas taças sempre victoriosas;
E eu Baccho tão sublime e tão honrado
Bebado, e mais de partes tão honrosas,
Hei de soffrer que o Fado favoreça
Outrem por quem meu copo se escureça?

LXXV.

Já quizeram os Fados que tivesse
Esta genta victoria n’esta parte,
Cujos campos o Tejo reverdece;
E que com tanto vinho não se farte!
Pois não se ha de soffrer que o Fado desse
A tão poucos tamanho esforço e arte,
Que venham beber vinho transtagano,
Abatendo o gran nome do Thebano.

LXXVI.

Não será assi: porque antes que chegado
Seja Vasco Bagulho, astutamente
Lhe será tanto engano fabricado,
Que nunca beba d’Ev’ra o vinho ardente.
A Monte-mór irei, e o indignado
Peito rovolverei do bom bebente:
Porque sempre per via irá direita
Aquelle que no vinho agoa não deita.

LXXVII.

Isto dizendo irado e quasi insano
N’esse Monte-mór fresco se desceu,
Onde tomando a fórma e gesto humano,
Para onde estava o Marques se moveu:
E por melhor tecer o astuto engano,
No gesto natural se converteu
De Talha-manco muito seu valido,
Um Taverneiro velho conhecido.

LXXVIII.

Estando assi bebendo co’elle a horas
Á sua falsidade accommodadas,
Lhe diz como eram gentes roubadoras.
Estas que ora de novo são chegadas,
Que das gentes nas vendas moradoras
Correndo a Fama veio que roubadas
Foram por estes homens que passavam,
Que sob capa de paz sempre ancoravam.

LXXIX.

E sabe mais, lhe diz, como entendido
D’estes bebados tenho bagulhentos,
Que deixam Riba-tejo destruido
Em beber com incendios violentos:
E trazem já de longe o engano urdido
Contra nós; que todos seus intentos
São para os nossos vinhos esgotarem,
E pipas, toneis, quartos, despejarem.

LXXX.

E tambem sei que tem determinado
Da virem buscar vinho aqui mui cedo,
Mas ter-lhe-hemos um tal ardil traçado
Que não cheguem a ver o de Louredo.
Á justiça darás logo recado
Que estes galantes prenda, que sem medo
Pelo caminho roubam, pela estrada,
E só com furtos bebem na jornada.

LXXXI.

E se assi não tivermos d’este feito
Impedido o caminho totalmente,
Eu tenho imaginado no conceito
Outra manha e ardil que te contente.
Manda-lhe aqui dar guia que de geito
Seja astuto no engano e tão prudente,
Que os leve adonde sejam submergidos,
Onde a agoa dê fim a seus sentidos.

LXXXII.

Tanto que estas palavras acabou,
O Tridentino André, bebado velho,
Os braços ao pescoço lhe lançou,
Agradecendo muito o tal conselho.
Em se apartando d’elle concertou
Para os poder prender todo o apparelho,
Com que em puro desgosto lhe tornassem
D’Evora o vinho puro que buscassem.

LXXXIII.

E busca mais para o cuidado engano
Um homem que d’alli com elle mande,
Sagaz, astuto, sabio em todo o dano,
De quem fiar se possa um quarto grande.
Diz-lhe que acompanhando o Alcochetano
Por ribeiras, por charcos com elle ande,
Que se d’aqui passar, que lá adiante
Vá cahir onde nunca se levante.

LXXXIV.

Já o carro d’Apollo caminhava
Pelo nosso horizonte, quando erguido
O bom Vasco c’os seus determinava
De vir por vinho á terra apercebido.
Os borrachões a gente desatava,
Corre-se cada qual não ter bebido;
E do que á venda veio novamente
Beberam todos logo em continente.

LXXXV.

Assi se vem chegando junto á terra
Para tomar o vinho necessario;
Mas o Marques o vinho todo encerra
Só pelo não beber o seu contrario.
Porém Vasco Bagulho que não erra
Em não se fiar d’este adversario,
Apercebido vem como podia
E entra em Monte-mór com alegria.

LXXXVI.

O grão Marques que o vê logo desmaia,
Diz á Justiça que ande apparelhada
De pistolete, chuça e azagaia,
De rodela, de casco e boa espada;
E que em dando recado logo saia,
Porque tome esta gente atordoada.
E para que melhor isto se faça
Vae-se beber com elles per negaça.

LXXXVII.

Bebendo André co’a gente sequiosa,
Andam os beleguins fóra espreitando,
E co’a chuça e azagaia perigosa
Ao Marques se entraram acenando.
Mas a gula que estava desejosa
De beber, sem recado vão entrando.
Qualquer se lança ao copo tão ligeiro,
Que nenhum dizer póde que é primeiro.

LXXXVIII.

Qual pobre ajuntamento d’estudante
De quatro, cinco ou seis de camarada
Que vê que é pouco o vinho e não bastante,
Que ha para todos só uma canada;
Qualquer d’elles pertende andar diante,
Por lhe não tocar vez esfarrapada:
Tal pressa ha nos de fóra e nos da terra,
Mas todos se vão já chegando á serra.

LXXXIX.

Eis no estomago o fumo se levanta
Da furiosa e quente companhia,
Que de tal modo bebem que se encanta
O vendeiro que o vinho lhes vendia.
A multidão dos fumos era tanta
Do vinho que á cabeça lhes subia,
Que logo o Alcaide foge de medroso,
De que o Marques ficou mui desgostoso.

XC.

Não deixam os que ficam sua empreza,
Mas o muito que bebem mal os trata,
Que se o beber tomavam por defeza,
Esse mesmo beber os desbarata.
Alegres ficam todos sem tristeza,
Já julgam a amizade por barata,
E trocam seus enganos á porfia
Pelo amor que do vinho lhes nascia.

XCI.

Vae-se cada um a casa retirando,
Porque quer vomitar muito apressado;
Quem arrota, e alli vae engulhando,
Na boca mette a mão desatinado.
O vendeiro fugiu, desamparando
A venda, do beber amedrontado;
Gloriam-se os que ficam do seu braço
Que a tantos afugenta em breve espaço.

XCII.

Uns deixam por alli suas espadas,
Dos outros quem a leva não o sente;
Quem se deixa cair ás tres passadas,
Quem bebe o vinho e o deita juntamente.
Arrombam as medidas ás pancadas,
Á parede se arruma o mais valente;
Assim que a gente d’antes inimiga
Com tão alto beber se torna amiga.

XCIII.

Passando isto, fica a camarada
Com gosto de haver feito tal empreza;
Manda logo fazer de vinho agoada,
Porque d’alli não quer outra riqueza.
Ficou a alma do Marques magoada,
No odio antigo mais que nunca acceza;
E vendo sem vingança tanto dano,
Sómente estriba no segundo engano.

XCIV.

Torna-se a elles, tendo-a já cozido,
Levando alguns refrescos que ha na terra,
Com um frasco de vinho mui comprido,
Mas sob capa de paz armado em guerra.
Piloto lhe offerece conhecido,
Dizendo que em taes vias jámais erra,
Com o qual se fizesse o que esperava,
Que a Evora os levaria confiava.

XCV.

O gran Vasco Bagulho, a quem convinha
Fazer já seu caminho desejado,
Que Borrachões não poucos cheos tinha,
Para buscar Louredo tão amado;
Recebendo o piloto que lhe vinha,
Foi d’elle alegremente agasalhado.
Despede-se com gran contentamento,
C’o guia, sem saber o falso intento.

XCVI.

Dest’arte despedida a gente honrada,
Começou a seguir o falso guia.
Não tinham meia legoa bem andada,
Quando do bom caminho se desvia.
O bom Vasco que não cahia em nada
Do grande engano que este tal lhe urdia,
D’elle mui largamente se informava
A que parte Louredo lhe ficava.

XCVII.

Mas o guia instruido nos enganos
Que o malvado do Marques lh’ensinára,
Leva-os por partes onde crueis danos
E morte em fim em agoas lhe prepara.
Diz-lhes que vão contentes, vão ufanos,
Que mui prestes verão a terra cara;
Porque elle caminhava por tal via,
Que cedo a Peramanca os levaria.

XCVIII.

E diz-lhes mais, com falso pensamento,
Que esta via por mais breve tomou,
Posto que um rio tem, mas sem tormento
E sem perigo sempre se passou.
O Bagulho que a tudo estava attento,
Muito com estas novas se alegrou;
E com grandes copadas lhe rogava
Os levasse por donde o porto estava.

XCIX.

O falso guia, porque determina
Dar-lhe porto, mas não qual elle pede,
Posto em Rio Marinho lh’o imagina
N’um pégo que em altura os mais excede.
Aqui o engano e a morte lhe maquina,
Para que tal beber com pressa véde;
E para o porto verem logo os chama
Onde lhe arma perderem vida e fama.

C.

Já para lá inclina a leda frota
E em chegando ao rio da cilada,
Um descalça o sapato, o outro a bota,
Para ir buscar a morte não cuidada.
Chega um bebado n’isto, que remota
Lhe parece esta gente e enganada,
E com duras palavras reprehendia
D’entrarem em tal pégo a ousadia.

CI.

Mas o malvado guia conhecendo
Ser manifesto o engano, n’um instante,
Se vae por uns outeiros acolhendo,
Corrido de não ir a sua ávante.
Os outros que ficavam ‘stão tremendo,
Cuidando qu’inda o engano era diante;
Mas o que os tirou d’elle, mui contente
Lhes diz que irá com elles juntamente.

CII.

Ficam todos então com alegria,
Bebem e dão de beber ao que os guiava.
Um olha para o ceo, e diz que via
Mais luas do que d’antes costumava.
Duas luas a mi, Senhor, dizia,
Ao Mouro, ao infiel que vos aggrava.
Outro a um tronco diz; bebei, Senhora,
Senão deitar-vos-hei os olhos fóra.

CIII.

E tendo esta ribeira já passada,
Onde os quiz afogar o falso guia,
A torre appareceu n’uma assomada
Onde matou Giraldo a má vigia.
Á mão direita fica situada
Uma povoação de que bebia
A gente principal da nossa idade,
Peramanca é o nome da cidade.

CIV.

E sendo o capitão aqui chegado
Estranhamente ledo, porque espera
De ser alli mui bem agasalhado
Dos refrescos que ha n’aquella terra:
Eis vem frascos de vinho com recado
De Diogo que sabe a gente que era,
Porque Baccho já d’antes o avisára
Que de bom vinho alli os regalára.

CV.

Agasalha-os a todos como amigos;
Preza-se já cada um de fallar certo,
Dando conta de todos os perigos,
Que em caminho passaram tão desertos.
Não curam de lhe dar uvas nem figos,
Mas o licor que deixa o olho esperto.
Quer imitar cada um o gran Barbança
Que pôz n’este licor sua esperança.

CVI.

Aqui já vem tomar, livre d’engano
Anda esta gente pouco conhecida,
E debaixo de um vil e pobre panno
Tão alta bebedice anda escondida,
Quem bebe vinho velho, quem d’este anno,
D’um e d’outro s’entorna sem medida.
E assi favoreceu o Ceo sereno
A quem deixou por vinho o seu terreno.

FIM.

Dale Oen

Natação, Ténis e Basquetebol são os meus desportos de eleição, desde muito tenra idade, tive a sorte de praticar os dois primeiros e o último de ser um hobby partilhado com amigos. 

No Basquetebol infelizmente esta tragédia já aconteceu algumas vezes, uma delas com uma pessoa conhecida, na Natação que me lembre nunca tinha ocorrido, faz-me um bocadinho de confusão confesso, a Natação é um desporto muito intenso mas de certa forma com menos impacto físico ou mazelas fisicas se preferirem, pensava eu, pelos vistos não.

Morrer de paragem cardiaca depois de um treino de natação nunca me ocorreu que pudesse acontecer.

Faz-me pena, principalmente tão próximo dos Jogos Olímpicos e prestes a realizar um sonho.

Brucista….

Dale+Oen

Tinha 26 anos, bolas com 26 anos andava eu  a procrastinar a minha vida, a jogar o tempo fora, a pensar que tinha todo o tempo do mundo….