Língua Portuguesa e Ciência – por Mário Vieira de Carvalho

in Público.pt

“Publicar em inglês é, sem dúvida, uma das condições da internacionalização da investigação. Contudo, seria um erro reduzir a produção e a circulação de conhecimento científico a uma única língua veicular. Também o latim o foi durante séculos, acabando destronado pelo uso do vernáculo. Não há razão para crer que os processos históricos de hegemonia e contra-hegemonia de tal ou tal língua na comunicação científica estejam encerrados. Pelo contrário, é plausível que a atual “correlação de forças” se altere num futuro mais ou menos próximo.

Além disso, em domínios como os das ciências sociais, artes e humanidades, não se pode fazer tábua rasa do que se publica noutras línguas. O alemão, por exemplo, é uma língua internacional de referência. O mesmo poderia ser dito do francês. Mas também o espanhol e o português são duas das línguas europeias mais globalizadas: pelos numerosos países que as adotam como línguas oficiais, pela sua expansão através comunidades espalhadas pelo mundo, pelos múltiplos departamentos de estudos portugueses e espanhóis em universidades europeias, norte-americanas ou asiáticas. Publicar em português ou em espanhol é publicar em línguas internacionais, que ainda por cima se potenciam mutuamente (pode-se falar duma comunidade científica bilingue no acesso à informação, na produção de conhecimento, em várias dimensões de cooperação e intercâmbio).

Neste sentido – e ao contrário do que alguns pretendem – Portugal não é comparável a qualquer dito “pequeno país” europeu, como a Eslovénia ou mesmo a Holanda, cujas publicações científicas têm um diminuto impacte se não forem vertidas em inglês, e cujas universidades procuram alargar a sua oferta de cursos em língua inglesa para atrair estudantes estrangeiros.

Na verdade, não falta irradiação internacional ao português e ao espanhol, mormente nos referidos domínios científicos. Essa irradiação de ambas as línguas é inseparável da riqueza multifacetada das culturas de que são expressão e que as torna tão atrativas para estudiosos de todo o mundo. O intercâmbio universitário e científico no espaço lusófono e ibero-americano bem como o número daqueles que aprendem português e/ou espanhol para aí estudar ou investigar tem crescido enormemente. Tal como nas universidades francesas ou alemãs, também nas universidades portuguesas e espanholas o ensino e a investigação nas respetivas línguas nacionais não pode ser considerado um obstáculo à internacionalização. Antes pelo contrário: mergulhar numa cultura e comunicar cientificamente na sua língua sempre fez parte dos processos de internacionalização na formação superior, a benefício de todos os interlocutores e do desenvolvimento científico. Tanto mais tratando-se de línguas fortemente globalizadas.

Infelizmente, os instrumentos de bibliometria científica não refletem esse diálogo entre comunidades linguísticas, mas sim a hegemonia absoluta da língua inglesa. O modelo das ciências da natureza é generalizado acriticamente a todos os ramos da ciência. Para contrabalançar essa dupla hegemonia, impõe-se a criação urgente de instrumentos bibliométricos alternativos – de preferência, comuns às publicações em línguas portuguesa e espanhola.

Designadamente em Portugal, uma política científica com visão estratégica não pode deixar de considerar prioritária a valorização do português como língua científica internacional. Surpreendentemente, porém, a FCT descarta-o, e só considera de impacte “internacional” o que não é publicado em português. Como se se quisesse aplicar a Portugal o regime da Eslovénia ou da Finlândia onde todos têm de usar o inglês para ser lidos e citados além-fronteiras…”

O Último Abraço

Por António Lobo Antunes.

Revi rostos, lembrei-me de vozes, não do Santa Maria mas do IPO e subscrevo.

Pequenos grande heróis que falam da doença e vivem-na com uma dignidade e força para lá do normal. Eu costumo despedir-me deles de modo diferente, as melhoras e que na próxima vez nos encontremos na rua.

O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria, onde a elegância dos doentes os transforma em reis. Numa das últimas vezes que lá fui encontrei um homem que conheço há muitos anos. Estava tão magro que demorei a perceber quem era. Disse-me

– Abrace-me porque é o último abraço que me dá

durante o abraço

– Tenho muita pena de não acabar a tese de doutoramento

e, ao afastarmo-nos, sorriu. Nunca vi um sorriso com tanta dor entre parêntesis, nunca imaginei que fosse tão bonito.

Com o meu corpo contra o dele veio-me à cabeça, instantâneo, o fragmento de um poema do meu amigo Alexandre O’Neill, que diz que apenas entre os homens, e por eles, vale a pena viver. E descobri-me cheio de respeito e amor. Um rapaz, de cerca de vinte anos, que fazia quimioterapia ao pé de mim, numa determinação tranquila:

– Estou aqui para lutar

e, por estranho que pareça, havia alegria em cada gesto seu. Achei nele o medo também, mais do que o medo, o terror e, ao mesmo tempo que o terror, a coragem e a esperança.

A extraordinária delicadeza e atenção dos médicos, dos enfermeiros, comoveu-me. Tropecei no desespero, no malestar físico, na presença da morte, na surpresa da dor, na horrível solidão da proximidade do fim, que se me afigura de uma injustiça intolerável. Não fomos feitos para isto, fomos feitos para a vida. O cabelo cresce-me de novo, acho-me, fisicamente, como antes, estou a acabar o livro e o meu pensamento desvia-se constantemente para a voz de um homem no meu ouvido

– Acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento, acabar a tese de doutoramento

porque não aceito a aceitação, porque não aceito a crueldade, porque não aceito que destruam companheiros. A rapariga com a peruca no braço da cadeira. O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio. Ali, na sala de quimioterapia, jamais escutei um gemido, jamais vi uma lágrima. Somente feições sérias, de uma seriedade que não topei em mais parte alguma, rostos com o mundo inteiro em cada prega, traços esculpidos a fogo na pele. Vi morrer gente quando era médico, vi morrer gente na guerra, e continuo sem compreender. Isso eu sei que não compreenderei. Que me espanta. Que me faz zangar. Abrace-me porque é o último abraço que me dá: é uma frase que se entenda, esta? Morreu há muito pouco tempo. Foda-se. Perdoem esta palavra mas é a única que me sai. Foda-se. Quando eu era pequeno ninguém morria. Porque carga de água se morre agora, pelo simples facto de eu ter crescido? Morra um homem fique fama, declaravam os contrabandistas da raia. Se tivermos sorte alguém se lembrará de nós com saudade. De mim ficarão os livros. E depois? Tolstoi, no seu diário: sou o melhor; e depois? E depois nada porque a fama é nada.

O que é muito mais do que nada são estas criaturas feridas, a recordação profundamente lancinante de uma peruca de mulher num braço de cadeira. Se eu estivesse ali sozinho, sem ninguém a ver-me, acariciava uma daquelas madeixas horas sem fim. No termo das sessões de quimioterapia as pessoas vão-se embora. Ao desaparecerem na porta penso: o que farão agora? E apetece-me ir com eles, impedir que lhes façam mal:

– Abrace-me porque talvez não seja o último abraço que me dá.

Ao M. foi. E pode afigurar-se estranho mas ainda o trago na pele. Durante quanto tempo vou ficar com ele tatuado? O lugar onde, até hoje, senti mais orgulho em ser pessoa foi o Serviço de Oncologia do Hospital de Santa Maria onde a dignidade dos escravos da doença os transforma em gigantes, onde só existem, nas palavras do Luís, Heróis.

Onde só existem Heróis. Não estou doente agora. Não sei se voltarei a estar. Se voltar a estar, embora não chegue aos calcanhares de herói algum, espero comportar-me como um homem. Oxalá o consiga. Como escreveu Torga o destino destina mas o resto é comigo. E é. Muito boa tarde a todos e as melhoras: é assim que se despedem no Serviço de Oncologia. Muito boa tarde a todos e até já, mesmo que seja o último abraço que damos.

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